terça-feira, 30 de dezembro de 2008

"Corcel Negro"

Corcel alado negro
de cascos incisivos
lúgubre asfixiante
dizima o prado

plantado pela mais pura pomba branca
que ao bater asas
espalhava sonhos
florescendo o horizonte

hoje pós-ceifa jazo
já não choro dentro
não sufoco desculpas
não vivo mas não sofro

abalas-me no meu sono
praguejando acusações
pune quem cega esses olhos de criança
e deixa-me voltar a adormecer

Orlando Monteiro

domingo, 28 de dezembro de 2008

“Acracia”

Esguio
Inconveniente
Egoísta
Felino
provoca riso e choro
leva-nos ao âmago do prazer e da dor
viciante, angustiante
acelera, pára
brinca
fadiga, euforia
Invasor, Conquistador
Anarca, Monarca
Amor, Amor

Orlando Monteiro

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

“ O Saque”

Fartura
onde escasseava
saqueaste, abalaste
onde pouco havia não ficou nada

Orlando Monteiro

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Garcia Lorca

Se as minhas mãos pudessem desfolhar


Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!!

Daniel Faria

Explicação da Ausência

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.

Daniel Faria, in "Explicação das Árvores e de Outros Animais"

domingo, 14 de dezembro de 2008

Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Poema "Seiva"

Hei! Eucalipto
Avisa
As tuas egoístas e macabras raizes
Que a seiva ainda abunda em mim


Orlando Monteiro

Fernando Pessoa

O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que teve,
Mas só as que eles não têm.

Fernando Pessoa


"Para um caso como o de Pessoa é preciso admitir que ele tinha esses sentimentos - mas que podia muito bem nunca os ter usado"

Citando Adolfo Casais Monteiro in Poesia de Fernando Pessoa

sábado, 13 de dezembro de 2008

Mario Sá Carneiro

Faz hoje um mês...
Quero vê-la...Quero vê-la...
Quero beijar-lhe a boca...
quero estreitar o seu corpo contra o meu...
Quero confundir a sua alma com a minha...
Quero-a! quero-a!

Vou partir...


Manucure - Diários
Mário de Sá-Carneiro

Poema "Sombra"

Se vires um anjo apedreja-o
protege-o de ti
só assim
não escorrerá sangue pelos seus cândidos olhos

Queima
as ilusões que lhe acalentas
espanta-o
dá-lhe o teu enxofre a cheirar


Não autorizes expectativas
magoa-o
talvez as sombras
não se voltem a alojar


Orlando Monteiro

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Daniel Faria

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.



Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998)

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Poema "Sede"

Tivesse eu muros altos dentro de mim
tão altos sem espectro para o exterior
impenetráveis à lacrimação
que me soneguaçe o interior do terriculamento

Não tivesse eu um edifício sobre os ombros
não tivesse labaredas no estômago
fosse seco
não tivesse eu tanta sede


Orlando Monteiro

sábado, 6 de dezembro de 2008

Ary dos Santos

Poeta castrado não!


Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Ary dos Santos

David Mourão Ferreira

"PARAÍSO"

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


David Mourão Ferreira

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Mário Sá-Carneiro

Caranquejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Mário Sá-Carneiro